Metida num convento à força, sinhazinha rica do século XVIII morre à míngua no Brasil. Havia engravidado de um homem oportunista e desleal. Isabel das Santas Virgens, acompanhante e amiga da desterrada, se apaixona depois pelo mesmo Don Juan. Isabel, embora serviçal, tinha um trunfo: sabia ler e escrever. Do cárcere, envia mensagem para D. Maria I, rainha de Portugal. Carta à rainha louca é romance picante, escrito por alguém que conhece os bastidores da vida monástica.
A narrativa de Maria Valéria de Rezende remete o leitor à língua portuguesa do período colonial. Um exercício bacana para compreender as raízes desse latim mal falado. Maria Valéria encontrou os rastros da personagem principal nos arquivos ultramarinos de Lisboa. Trouxe suas pegadas para as ruas de pedras de Olinda e de Salvador, onde descendentes dos lusitanos internavam suas filhas para servir a Deus ou para castigá-las por amar o homem errado, sem posses ou sem descendência de estirpe considerada nobre.
Na voz da mulher enclausurada, a autora mistura incivilidades históricas – que forjaram a nação – com mediocridades cotidianas, que persistem na tradição da cultura brasileira. Censurada em vários trechos pela própria Isabel das Santas Virgens, o texto denuncia a violência praticada contra as mulheres nos finais dos séculos XVII e XVIII.
Nas rasuras pode-se entrever quão dura e triste era a vida, como ainda é, para os que não têm posses: “Porque nestas colônias que se dizem Vossas, mas são mais do Demônio do que Vossas, é assim que se vive quando não se tem rendas, tratados os cristãos pobres como se fossem menos do que animais de trabalho”(p. 11). Rezende faz anologias entre o distante país que se formava, fruto do poder dos brancos (em grande parte analfabetos) sobre os oprimidos negros e índios “ainda que não sejam justas as ações que desse poder emanam” (p. 19). Nesse período, apenas os homens tinham o direito de decidir sobre tudo, incluindo o corpo e os sentimentos das mulheres de sua família, assim como sobre corpos e sentimentos de seus escravos. Senhores de suas terras, de suas minas e de seus animais tinham leis muito mais duras para as degredadas filhas de Eva. Porém, Isabel era diferente, como são anda muitas mulheres. Sabida na arte das letras e do mundo dos negócios, mas sem forças para lutar contra a ilusão do amor.
“Não vos ofendais, Senhora, com essas coisas vergonhosas que Vos confesso aqui, pois já Vos disse que o faço para que creiais não serem enganos tudo o demais escrito nesta carta, e por certo sabeis como são e as imoralidades e crimes que perpetram os homens poderosos de Vossos reinos, aos quais uma pobre mulher não tem força para se opor e nada mais pode fazer senão voltá-los contra eles” (p. 129).
Isabel critica padres e abadessas, que se revestem do sacro-santo destino para fazer a vida negra aos que não possuem a mesma religião. Certos lances lembram Do amor e outros demônios, de García Márquez. O destino de Sierva Maria também passa por aí. O olhar do colonizador e do macho hipócrita é sempre o mesmo: não há respeito pelo outro.
O personagem de Tirso de Molina, volta a seduzir e bolinar o tesão da rapariga: “E sonhar que novamente me achava nos braços fortes de Diogo de Távora, sentindo aquecer-se um lume no centro do meu ventre”. (p. 40) As cenas e os gemidos de gozo bailam como lanternas de vagalumes. Derrotada, ela admite: “[…] a única cousa que me pode manter sã a mente, de sorte que eu não naufrague para sempre no mar encapelado dos meus delírios, é o esforço em ordenar palavras em meu pensamento e no papel […]” (p. 51). Desejo recôndito da mulher sensível de qualquer século.
Maria Valéria de Resende, nasce em Santos – SP, passou pela Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, graduada em Língua e Literatura Francesa e em Pedagogia. Dedicou-se à educação popular na periferia de São Paulo. Mora no Nordeste desde 1971. Obras mais aclamadas: Vasto mundo (2001) O voo da guará vermelha (2005), Quarenta dias (2014) vencedor do Jabuti, e Outros cantos (2016) vencedor de Casa de las Américas, Jabuti 2016, e Carta à rainha louca (2019).