Capa: desenho de Paulo Pt Barreto, pena de bambu e nanquim sobre papel. Editora 34, 2011.

endereçados ao inferno, os sarga, descendentes de uma vaca – como diziam os falamentos das línguas más – não têm outra opção a não ser viver uma fábula miserável chorando suas “mágoas ao ruído nenhum da manhã” (p.63). ermesinda sai sorrateira para satisfazer o dono da terra. amaldiçoados, personagens vivem coisas tremendas “a ganirem alfabetos porcos para encostarem de sexo às paredes e ao chão” (p.22). o remorso de baltazar serapião (2006) se dá à bruta.

de sobrenome estranho, valter hugo segue de igual investida nos títulos outros de escrita periférica. em minúsculas. sem marcas de diálogos. como se o leitor pudesse (e pode) interpretar as pausas e entonações como melhor lhe apetecer. saramago, o nobel da literatura portuguesa, ao ler o remorso de baltazar serapião sentenciou: “às vezes tive a impressão de assistir a um novo parto da língua portuguesa”. talvez exagero fosse. com esse primeiro livro de prosa, o abusado valter hugo mãe (de nome inventado) ganhou o prêmio literário josé saramago, em 2007. três anos depois, o escrito chegou ao brasil. o autor também é poeta, artista plástico, cantor, editor e dj. daí a facilidade de bulinar palavras e ajeitá-las numa sonoridade inaugural. acutilâncias que, sem ferir, dão novo sabor à língua. mãe foi comparado a guimarães rosa. não chega a criar palavras, mas faz com que termos arcaicos metidos ao meio da linguagem provoquem novas sinapses.

a história tem sombração e bruxa. tem a teresa diaba, descontada das ideias, que salva a todos das angústias de corpo. tem curandeiro e velha queimada. e a descrição brutal do feminicídio por conta do velho sarga descobrir que o filho não era dele: “o meu pai rebentou braço dentro do ventre da minha mãe e arrancou mão própria o que alguém ali deixara”, conta serapião (p.75), que seguiu o exemplo. aos poucos retorceu e aleijou sua ermesinda. até que ela desfaleceu, “desfeita em desonra e mais nada” (p.178), escurecendo de vida o redor. quem dera fosse apenas exagero literário. melhor dito, os machos reais – cornudos ou não – também encontram bons argumentos para matar ou justificar suas canalhices.

o estilo engendrado n’o remorso de baltazar serapião, explode n’a máquina de fazer espanhóis (2010). profusões doridas d’alma lusitana: submissão ao regime salazarista, submissão aos mandos da igreja católica, submissão da mulher à família, submissão às tradições dos tataravós carrancudos das aldeias. na escrita de valter hugo mãe, nascido em angola – criado no norte de portugal – há o registro de muitos remorsos, desamores e coscuvelhices, pois o paraíso são os outros (2014). mas há também um mar de poesia e resistência do pequeno país à beira atlântico plantado, onde se faz revolução com flores.

Compartilhar:

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here