Não há grades nem algemas separando os professores dos alunos na sala do Cursinho Pré-vestibular que existe dentro da Penitenciária Estadual de Londrina – II (PEL 2). Diferentemente do que pode ser para muitos, cursar uma graduação não era uma realidade acessível para a maioria dos detentos.
“Uma palavra para mim resume: oportunidade. Para a direção do sistema, para a sociedade em si ver o valor que a gente tem como ser humano, não só como preso. A gente pode ser alguém, tem o benefício da escolha de almejar algo na vida. Esse projeto abre o olho, a alma e o coração das pessoas”, relata um dos alunos do cursinho, de 28 anos e preso na PEL 2 há cinco anos.
Segundo Emerson Chagas, 47, diretor da PEL 2, dos 1240 detentos que estão hoje na unidade, apenas 120 têm o ensino médio completo – menos de 10% da unidade. Ele estima ainda que cerca de 70% dos apenados que chegam à PEL 2 têm como escolaridade apenas o fundamental incompleto. Dos 35 alunos do cursinho que aceitaram conversar com a reportagem, apenas dois já haviam colocados os pés dentro de uma universidade: um é formado em administração e outro cursou seis meses de Engenharia Elétrica antes de ser preso. Mais da metade havia concluído os estudos de ensino fundamental e médio dentro de unidades prisionais.
V., 37, parou os estudos aos dez anos e concluiu-os dentro de uma unidade penal em 2013. “Apesar de eu estar preso, esses três anos que eu trabalho na biblioteca foram a melhor fase da minha vida. […] Quando eu via as pessoas na faculdade, esses universitários, para mim era só rico. Nunca passou pela minha cabeça que eu conseguiria entrar uma vez na UEL”.
Como surgiu o Cursinho Pré-Vestibular dentro da Penitenciária?
Em 2013, o juiz titular da Vara de Execuções Penais (VEP) de Londrina, Katsujo Nakadomari, junto com a professora que coordenava o CEEBJA (Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos), começaram a buscar um projeto que desse seguimento aos estudos dos detentos que concluíam o ensino médio dentro das unidades penais da comarca. Foi firmada então uma parceria junto à UEL (Universidade Estadual de Londrina), a qual possibilitou a constituição da primeira turma do cursinho pré-vestibular. “A ideia era dar algum encaminhamento aos presos que concluíam o ensino médio e não tinham outras oportunidades de estudo. Assim começou a turma de 2013”, conta Nakadomari.
Segundo Miriam Medre Nóbrega, pedagoga na PEL 2, em 2013 havia cerca de 960 detentos na unidade. Apenas 25 já possuíam diploma de ensino médio. Na época, o cursinho aprovou seis alunos no vestibular da UEL. A partir do momento em que o juiz da VEP passou a liberar os apenados para estudar, muitos outros começaram a se interessar pela oportunidade.
Em 2014 o convênio firmado entre o Depen/PR (Departamento Penitenciário do Estado do Paraná) e a UEL foi rescindido. Assim, os detentos que pretendiam prestar vestibular estudavam por conta, com os materiais cedidos pelo CEPV/UEL (Cursinho Especial Pré-Vestibular da UEL).
Através de uma iniciativa conjunta da direção da PEL, do Juiz da VEP e da Universidade, o projeto foi retomado em 2019. Com o investimento do Conselho da Comunidade foi aberta uma turma para 50 alunos, que recebem o mesmo material acessado pelos estudantes do CEPV/UEL – um projeto de extensão da Universidade, onde quem dá as aulas para os vestibulandos são os próprios alunos de graduação.
Critérios de classificação para participar do cursinho
Nóbrega explica que há uma Comissão Técnica de Classificação, formada por profissionais do jurídico, da pedagogia e da psicologia que selecionam quais detentos podem participar das aulas do cursinho. São critérios de seleção: o tempo de pena a ser cumprido (privilegiando os detentos que possuem perspectiva de sair mais cedo), o perfil do apenado e o comportamento dentro da unidade. Condenados por crimes sexuais, por exemplo, não podem participar das aulas do curso, pois ficam numa galeria separada dentro da Unidade. Contudo, podem prestar o vestibular e o Enem. Como o acesso dos apenados ao estudo é uma garantia constitucional, “não existe pena impeditiva de acessar o vestibular”, afirma a pedagoga. Sobre a importância de tal medida como forma de acessar o estudo, ela ainda arremata que “se não é pela educação, por outro caminho é muito difícil. É uma perspectiva de mudança de vida”.
J., 35, aluno do cursinho também encara o projeto como uma esperança: “Foi o que aconteceu de mais importante na minha vida e na de muitos que estão aqui. Agora, mesmo que nós não consigamos neste ano ingressar na universidade, nós podemos retomar sonhos antigos que foram frustrados não pelas pessoas, mas por nós mesmos”. J., começou a trabalhar aos 16 anos como entregador em uma farmácia. “Por trabalhar das 14h às 22h eu fui desanimando de estudar”. Ele parou no primeiro ano do ensino médio e finalizou os estudos na Casa de Custódia em 2018. “Eu não tinha condição de fazer nem um curso técnico em enfermagem ou algo assim por não ter terminado os estudos, quanto mais de ser um enfermeiro ou um médico. É uma realidade muito distante para quem vive na periferia, para quem mora na margem da sociedade. Agora eu tô conseguindo poder voltar sonhar de novo”.
Seja pelo sonho de se aproximar da liberdade, seja pelo acesso a algo que até então era inatingível, em 2019 havia 26 apenados cursando uma graduação, segundo informações do Creslon (Centro de Reintegração Social de Londrina), órgão responsável pelos detentos que estão cumprindo regime semiaberto. Até o encerramento desta matéria, o órgão tinha registrado 41 detentos que deixaram unidades penais de regime fechado cursando alguma graduação.
Vestibular 2020
Da primeira para a segunda fase do vestibular 2020 da UEL, 27 alunos do Cursinho da PEL 2 foram aprovados – o que representa 54% de aprovação. Ao final do vestibular, foram aprovados em primeira convocação dez detentos, 20% da turma inicial.
A professora Rita de Cássia Rodrigues, coordenadora do CEPV –UEL e do projeto que atende à Penitenciária, afirma que o cursinho dentro do campus teve 91 aprovados, o que representa 19% em relação aos 457 alunos que prestaram a primeira fase do vestibular. Alguns detentos não foram contemplados pelas vagas do cursinho, mas seguiram estudando por conta própria. Até o fechamento desta reportagem, quatro desses detentos passaram na segunda fase do vestibular, sendo um deles aprovado na segunda convocação.
O impacto do estudo na prisão
Linimar Aguiar Fernandes, 43, chefe de segurança da PEL 2 e agente penitenciário da unidade há sete anos, nota diferença na conduta dos detentos e maior facilidade de organização na segurança das galerias em que os apenados acessam algum nível de estudo. “A segurança não se faz só com cadeado, grade e concreto. A segurança se faz com a humanização do detento. A partir do momento que você possibilita o tratamento penal digno, dando oportunidades, é notória a mudança”.
Fernandes ainda alerta para a importância do apenado ter alguma maneira de se aprimorar: “O preso que hoje entra aqui e fica dez anos sem nenhuma oportunidade de estudo vai sair do mesmo jeito ou pior. […] Essas pessoas vão sair uma hora. Elas não vão ficar eternamente aqui. E aí?”.
O juiz da VEP, Katsujo Nakadomari, faz o mesmo alerta: “Enquanto o preso está na cadeia ele está contido. Quando ele sai – e ele vai sair uma hora, porque não existe prisão perpétua no Brasil – ele vai estar contigo. A senhora [repórter] quer ele do seu lado ressocializado ou quer ele bandido?”.
Um novo futuro?
Nakadomari afirma que não basta, contudo, passar no vestibular. Depois de aprovados, os detentos passam por uma entrevista junto ao Juiz da VEP, que decidirá quem pode frequentar uma universidade. “É difícil. Você não imagina como é difícil. […] Eu não posso errar com a comunidade”.
O Juiz da VEP analisa, conforme os antecedentes, as intenções e o crime praticado quais detentos possuem perfil adequado para poder sair e voltar para a unidade prisional diariamente. “Eu converso um por um, gasto de uma a duas horas com cada. Não tem importância”, ele ratifica. Um dos critérios mais importantes é que o preso, através do estudo, não venha a reincidir em nenhuma prática criminosa: “Eu quero liberar o preso para não mais reincidir. Todo o sistema é falho. Mas nem por isso nós vamos nos entregar”.
A PEL 2 está, desde o começo de 2019, passando para o formato de Unidade de Progressão, o qual tem como objetivo integrar todos os detentos em programas de trabalho ou estudo, como esclarece Chagas. Para ele, apesar de todos os problemas técnicos e da escassez de recursos financeiro e humanos, a maior dificuldade está na mudança do pensamento da sociedade. Para o ano de 2020, o plano é a continuidade do projeto, com a abertura de uma turma nova, também com investimento do Conselho da Comunidade.
O texto foi concedido ao Periférico pela autora Isabella Alonso Panho, advogada e estudante de jornalismo da Universidade Estadual de Londrina.
Edição: Gabrieli Chanthe